As Corgas e as Passarias ou Parcerias das Telheiras

“Aos sette dias do mez de Dezembro do anno de mil settecentos e vinte e seis faleceo da vida prezente, com todos os sacramentos mostrando ter de idade quarenta annos pouco mais ou menos, em a sua quinta das Corgas, Francisca Rosa Bernarda, viúva do Capitão André da Rocha e Sousa, desta freguesia…”.(1) Assim rezam os Registos Paroquias de Alfena, no caso, o registo do óbito da viúva do Capitão da Companhia de Ordenanças de Alfena. Mas onde ficavam as «Corgas» e, mais especificamente, a «Quinta das Corgas» supra mencionada?

É portanto neste e noutros topónimos da nossa cidade e nas suas origens que nos vamos centrar no presente artigo.

Começando pelas «Corgas», topónimo desconhecido da generalidade dos Alfenenses, e que, infelizmente, não faz parte da moderna toponímia como denominação de um arruamento, designa a área onde hoje se situa o Complexo Desportivo do A.C. Alfenense e o loteamento industrial envolvente. Com efeito, dois dos quatro prédios rústicos onde foi construído o Complexo Desportivo tinham a designação de «Bouça das Corga(2) e «Bouça Nova das Corgas».(3)

O nome deriva claramente da quantidade de linhas de água(4) que cruzam a zona, correndo em vários sentidos para o Leça. Embora actualmente escondidas e entubadas, mercê da transfiguração que o lugar sofreu nos últimos anos, quer pela construção do Loteamento Industrial, quer mesmo pelo atravessamento da auto-estrada, o facto é que as linhas de água continuam lá, dando «sinais de vida» durante os invernos mais rigorosos.

O Alto das Corgas e a sua cumeada, desde Agra de Monforte até às Telheiras (elevação já próxima do Leça), eram como um limite natural entre os históricos lugares de Baguim (a norte) e Cabeda (a sul).(5)(6)(7)(8)(9)(10)

O Alto das Corgas ou a «Mamoa do Piolho», em 1974 (antes do início da Cosntrução do Complexo Desportivo) - planta topográfica CMV

A Rua das Passarias, por seu turno, é hoje uma das principais artérias da cidade de Alfena, e fonte de constantes erros ortográficos, dado o caracter incomum do topónimo. Utilizando parte do percurso da antiga Estrada Real Porto-Guimarães, entre o Alto das Corgas (imediações do Complexo Desportivo do AC Alfenense) e a parte central do moderno lugar do Barreiro (nas imediações da Quinta das Telheiras), esta via atravessa uma área de forte expansão urbanística da nossa cidade, quer residencial, quer industrial, empresarial e mesmo desportivo ou recreativo e é sobre este topónimo fora do comum que nos iremos debruçar de seguida.

A Estrada Real, antecessora da moderna N105, a qual data do Fontismo (2.ª metade do Séc. XIX), saindo da Invicta Cidade, pela chamada «Porta de Carros» nas imediações da moderna estação ferroviária de S. Bento, subindo pela Rua do Bonjardim até ao Jardim da Aguardente (actual Praça do Marquês), seguindo depois pelo Ruas do Lindo Vale e Costa Cabral até à Areosa, e depois por um percurso próximo da actual Rua D. Afonso Henriques, atravessando o Leça na ponte medieval da Travagem, e seguindo pelas Ruas da Boavista e Nova da Boavista (ainda em Ermesinde), entrava em território alfenense na chamada «Agra de Monforte»(11), próximo do Alto de Vilar, num ponto onde se encontram 3 freguesias (Alfena, Ermesinde e Folgosa [Santa Cristina do Vale Coronado]).

O seu trajecto em Alfena era feito pela moderna Rua de Monforte, depois pelas traseiras dos prédios da Rua de Vilar contornando o Complexo Desportivo do AC Alfenense até encontrar a Rua das Passarias, junto ao entroncamento com a Rua da Telha (uma pequena explicação para a «privatização» deste pequeno troço: aquando da construção da moderna Rua de Vilar, na década de 60 do Século XX, existiu uma permuta de terrenos, na qual os proprietários cediam terreno para a construção da nova artéria – mais rectilínea – e, em troca, receberiam o terreno do antigo caminho – a Estrada Real).

Do Alto das Corgas, a Estrada Real seguia pela Ruas das Passarias, Senhora da Piedade, Várzea, Coroa e Nova de Alfena até chegará Rua de São Lázaro, onde encontrava uma outra estrada real, mais antiga, que vinha do Reguengo, Cabeda, Aldeia Nova, Igreja e atravessava o Leça, junto à Gafaria, na Ponte de Alfena (ou de São Lázaro).

Daqui, a Estrada Real seguia pela Rua de São Lázaro (a Rua de Alfena) até ao antigo «Rossio da Codesseira», entretanto parcialmente «privatizado» após a construção na nova Estrada Nacional. Da Codeceira, seguia pelas Ruas do Outeirinho, do Xisto, da Gandra, subindo depois para a Rua da Lagoa, por um caminho, também entretanto «privatizado». No final da Rua da Lagoa, seguia pela Rua do Ribeiro, descendo em direcção ao Ribeiro de Covas, até encontrar a Rua de Covas, limite de freguesia com Água Longa, seguindo, já em território desta freguesia, pela Rua da Portela Alta em direcção à «Cidade Berço».

O imponente portal setecentista da Quinta das Telheiras ou das Corgas

Já a «nova» estrada nacional, criação do fontismo como atrás foi dito, teve um nascimento algo conturbado, ficando até registado um protesto formal, datado de 31 de Março de 1845, da vereação do Concelho de Valongo, pelo trajecto escolhido para a nova via: “vai atravessar uma solidão montanhosa de cerca de três léguas onde os viandantes não poderão encontrar recurso algum”(12)(13). Até aos anos 70/80 do Século XX, a chamada «Funda das Telheiras», onde hoje se localiza, por exemplo, o nó da A41, era ainda um lugar ermo, atravessado em recta pela estrada nacional, e que os Alfenenses evitavam transpor sozinhos…

Parte desta «solidão de três léguas», também denominada de «recta de Alfena» foi inclusive aproveitada num poema de José Carlos Vasconcelos, «Romance dum camponês de Freamunde»:(14)

“…Na recta de Alfena, um carro, velocíssimo,

Com os faróis apontados,

Passa rés-vés os cornos da toura, cerce,

A toura salta, o Calatré joga

O denso varapau de rijo marmeleiro,

E solta um insulto fantástico, que trespassa o ar,

Acorda o silêncio da noite,

Até que a noite, assustada, estremece…”

Brasão nobiliárquico existente no Portal das Telheiras

Mas voltado às Passarias, qual será mesmo a origem deste topónimo incomum?

Em nossa opinião, corroborada por alguns documentos antigos, a sua origem estará numa corruptela popular da palavra «Parcerias»(15). Grande parte dos terrenos localizados entre a Quinta das Telheiras e o Alto das Corgas pertenceriam à Quinta das Telheiras(16)(17) e teriam sido cedidos (muito provavelmente, emprazados)(18) a moradores locais para exploração económica dos mesmos, nomeadamente através da cerâmica artesanal. Até ao recente loteamento industrial, realizado nesta zona da cidade, era possível encontrar locais de extração de barro (daí a origem do moderno topónimo «Barreiro») e fornos para confecção artesanal de telha (originando o topónimo «Telheiras»).

Também da consulta dos registos paroquiais de Alfena, é possível a identificar que uma das profissões mais comuns dos Alfenenses seria a de «telheiro», ou seja, uma clara referência à elevada importância da cerâmica na economia local, aliás bem marcada, já no século XX pela importância que assumiu a Fábrica de Cerâmica de Ermesinde, hoje Fórum Cultural da cidade vizinha.

Mas, voltando ao início, onde ficaria então a «Quinta das Corgas»? Outros documentos históricos identificam o Capitão de Ordenanças André da Rocha e Sousa como proprietário(19) da Quinta das Corgas, ou Quinta das Telheiras (esta última, designação bem mais conhecida dos Alfenenses), demonstrando, também por essa via a associação das «Telheiras» às «Corgas».

A localização de alguns dos toponimos (desenhados sobre a folha 110 da Carta Militar de Portugal - IGEOE)

Dito de outra forma, a parte baixa do histórico lugar de «Baguim d’Alfena» assumiu dois topónimos: a «Várzea», na zona onde o aproveitamento agrícola dos terrenos era superior, e as «Corgas ou Telheiras», na zona que onde o aproveitamento agrícola era mais reduzido, tendo de permeio a pequena elevação de  «Punhete»  (aludindo à forma de pequeno punho sobre o Leça que essa elevação assumia)(20). Se o primeiro topónimo, a Várzea, chegou aos nossos dias e denomina, ainda hoje, um dos tradicionais lugares de Alfena, já os restantes caíram claramente em desuso, substituídos pelo moderno topónimo de «Barreiro». 

Por: Ricardo Ribeiro (*)

(*) Membro da AL HENNA – Associação para a Defesa do Património de Alfena.

(1) Livro de Mistos N.º 3 da Paróquia de Alfena, E/27/4/2-6.1. fl. 332. Alfena: A.D. Porto, 1712-1766

(2)  Registo predial da freguesia de Alfena, Livro B-49, fl. 32v, descrição N.º 18781

(3)  Registo predial da freguesia de Alfena, Livro B-59, fl. 145, descrição N.º 17817

(4) SILVA, Fernando J. da. Dicionário da Língua Portuguesa, 3.ª Ed. Porto: Ed. Domingos Barreira, 1967.

(5) Chancelaria de D. Dinis – Livro IV, fl. 51v. Coimbra: ANTT, 1308

(6) Tombo da Comenda de Águas Santas K/26/8/1-238, fl. 476-482v. Águas Santas: AD Porto, 1631

(7) Tombo da Comenda de Águas Santas K/15/3-3, fl. 431-435. Águas Santas: AD Porto, 1668

(8) Tombo da Comenda de Águas Santas K/15/4-22, fl. 427-430. Águas Santas: AD Porto, 1694

(9) Tombo da Comenda de Águas Santas K/15/3-1, fl. 1-343v. Águas Santas: AD Porto, 1725

(10) Tombo da Comenda de Águas Santas K/15/4-30, fl. 248-558. Águas Santas: AD Porto, 1771

(11)  Tombo da Igreja de São Vicente de Alfena – Colégio do Carmo da Universidade de Coimbra, ColCarmo10, Alfena: Arq. Univ. Coimbra, 1689

(12)  MOREIRA, Domingos A.. ALFENA, a terra e o seu povo, Cucujães: s.n., 1973

(13) Em bom rigor, a primeira estrada nacional construída no «Fontismo» a ligar o Porto a Guimarães foi a actual 105-2 (estrada pela Serra) que, entre Santa Cristina de Folgosa e Santa Cristina do Couto (já à entrada de Santo Tirso), a única povoação que atravessava era o lugar de Vilar de Luz (Folgosa), daí o protesto relativo à solidão montanhosa de uns exactos 12,5 kms (cerca de 3 léguas). A construção da moderna N105 é posterior, de finais do século XIX, e pelo facto de atravessar uma zona mais povoada, e de relevo menos acidentado, foi sendo preferida à anterior.

(14) VASCONCELOS, José Carlos. Corpo de Esperança, p. 52-57. Coimbra: Cancioneiro Vértice, 1964.

(15) Tombo da Comenda de Águas Santas K/15/4-30, fl. 306. Águas Santas: AD Porto, 1771

(16) Em bom rigor, todos os terrenos, a exemplo de todo o histórico lugar de Baguim, eram pertença da Comenda de Águas Santas, sendo que alguns dos terrenos estavam emprazados, em 1725, a Francisca Rosa Bernarda de Figueirôa, viúva do Capitão André da Rocha e Sousa, tendo depois transitado para o Cónego Simão Pacheco Ferraz de Melo, responsável, cerca de 1740, pela construção do Solar, da Capela de N. Sra. Da Piedade e do Portal brasonado com as armas dos Pacheco, Figueirôa, Ferraz e Melos. Outros terrenos, também em 1725, estavam emprazados a Bernardo Ferraz de Melo, pai do Cónego.

(17) Tombo da Comenda de Águas Santas K/15/3-1, fl. 18. Águas Santas: AD Porto, 1725

(18) Muito provavelmente, subemprazamentos.

(19) Mais correcto será dizer enfiteuta, pois apenas era titular do direito do domínio útil da propriedade, já o domínio directo, ou de raiz, cabia à Comenda de Águas Santas.

(20) De forma idêntica temos a Vila de Constância que se situa numa pequena elevação na confluência dos rios Tejo e Zêzere, e que até 1836 tinha a designação de Punhete.

Publicação original em 22.11.2013