A Bacia do Tabãos
A recente colaboração da AL HENNA com o Pelouro do Ambiente da CM de Valongo para a realização de uma caminhada pelas serras de Alfena(1), trouxe-nos à ideia a elaboração de um artigo versando sobre um recanto de Alfena, desconhecido para muitos alfenenses, um recanto que urge cuidar e preservar, evitando-se novos atentados como alguns já realizados e outros que já se anteveem. Referimo-nos ao sítio de «Chãos» ou, de forma mais abrangente, à Bacia do Ribeiro de Tabãos (ou de Pedaços) e do seu vizinho menor o Ribeiro de Valgodinho (ou de Felgueiras).
Para os menos conhecedores do local, e apoiando-nos na nova auto-estrada (A41), sensivelmente a meio caminho entre os dois nós que servem a nossa Cidade (Alfena [na «Funda das Telheiras»], a nascente, e Água Longa [na «Chã dos Olhos», em Junceda], a poente) surge um viaduto com indicação de «Ribeiro de Tabãos», ora a zona que abordamos neste pequeno artigo é toda a extensa área (cerca de 5 km2) que se estende até aos limites com Sobrado e Valongo, simultaneamente, limites da Bacia Hidrográfica do Leça.
Assim, vamos fazer uso das publicações de alguns estudiosos da matéria, entre os quais o insigne geógrafo Orlando Ribeiro(2)(3), para apresentar alguns apontamentos de caracterização deste local, que corresponde, grosso modo, aos históricos lugares da Rua e de Transleça.
A crer na toponímia que chegou aos nossos dias, pelo menos até ao Tombo de 1689(4)(5), que denomina uma das elevações no limite de Alfena com Sobrado de «Picoto Crasto», é de admitir que as primeiras populações (castrejas) se terão fixado nessa elevação, local de mais fácil defesa, e rico em nascentes de água.
Com a Romanização, e são vários os vestígios de mineração desse tempo(6), seria natural que a população tivesse descido do «castro» para posições mais próximas do fértil Vale do Leça, «a villa», abandonando as anteriores posições mais defensivas. Assim terá nascido o lugar de Alfena onde, durante a Idade Média, surgiu uma Gafaria, instituída em Honra pelo Senhor da Terra da Maia, João Pires da Maia(7)(8) (sobrinho-neto do Lidador e genro de Egas Moniz). Gafaria, que iria transformar-se em entidade senhorial da vasta Bacia do Ribeiro do Tabãos e áreas adjacentes.
A Gafaria de Alfena, administrada pelos Pinto Coelho, Senhores de Felgueiras, Vieira e Fermedo(9)(10), celebrou vários contratos de emprazamento por três vidas (as enfiteuses), dos terrenos mais planos, os campos/prados e as Bouças, deixando de fora os «montes», terras mais altas e de maior declive e, portanto, de menor rendimento agrícola, que permaneceram maninhos até à segunda metade do século XIX. Se os campos/prados (terrenos agrícolas por excelência) e as bouças (terrenos relativamente mais planos para a produção florestal e recolha de lenhas e matos) tinham uma utilização mais intensiva em termos agrícolas e silvícolas, por parte dos casais enfiteutas, já os montes maninhos eram de utilização comum para a pastorícia do gado miúdo e para a recolha de lenha e mato para estrume e cama dos gados. Convém recordar que mesmo a população que não trabalhava a terra tinha o seu gado miúdo.
Com a introdução do regadio do milho, a partir do Século XVII, assiste-se a uma transformação radical da paisagem, não sendo a Bacia do Tabãos uma excepção à regra. Por todo o lado são construídas obras de hidráulica, pequenos diques para suster a água e canais de rega para encaminhar a água para os campos de regadio, alguns destes canais tinham vários quilómetros de extensão e ainda hoje funcionam. Em todas as linhas de água são construídas pequenas albufeiras para regadios de consortes, estruturas comunitárias para benefício comum. Isto ocorreu no Ribeiro de Tabãos, no de Junceda, no de Vale de Nabos, no de Chãos, no de Valgodinho, só para citar os da área que versamos. Ao longo dessas levadas foram também construídos moinhos para a moagem do cereal, dos quais, hoje, apenas restam alguns em ruínas.
Por outro lado, o facto de Alfena deter consideráveis áreas de terrenos de bravio, possibilitava às suas gentes a venda de carqueja e da queiró, combustíveis para padarias e casa particulares, de rachão (pequenos toros de pinho com cerca de três palmos rachados ao meio) para as caldeiras geradoras de vapor em substituição do carvão, e de mutena (de menores dimensões) para fogões domésticos a lenha. (11)
Dos extensos montados de Alfena até mato se «exportava» para os agricultores de S. Lourenço D’Asmes, de Águas Santas, de Rio Tinto, freguesias vizinhas de intensa actividade agrícola, mas com muito menos recursos desse tipo, e até mesmo para as indústrias que começavam a surgir na Cidade Invicta… (11)
Após a Revolução Liberal e consequente Guerra Civil, a nova Reforma Administrativa vem alterar significativamente o mapa administrativo do País (1836)(12), abolindo-se numerosos pequenos concelhos, mas também criando-se novos, como o caso do Concelho de Valongo (assunto que abordaremos em futura ocasião).
Nos primeiros anos de vida, os novos concelhos debateram-se com falta de receitas, havendo necessidade de, periodicamente, se instituírem novos impostos locais que, não raras vezes, motivavam a revolta das populações, como foi o caso da Primavera 1838, quando a revolta popular contra os novos impostos lançados pela Câmara, motivou a transferência desta para Alfena.(5)(13)
Em 28 de Agosto de 1869, uma Lei do Governo do Duque de Loulé(14), vem permitir às Câmaras Municipais a divisão e o aforamento dos baldios «a pedido da maioria dos moradores», como forma de financiar os investimentos municipais (esse foi o pretexto, a realidade foi bem diversa…). Esta «privatização dos maninhos» foi a forma encontrada para conseguir a arrecadação de alguma receita adicional. Como se costuma dizer, a História é cíclica, daí a necessidade de a estudarmos. Ontem como hoje, os procedimentos da classe dirigente não mudaram muito…
Assim, na década seguinte, a recém-criada Câmara Municipal de Valongo irá «privatizar» os montados maninhos, na área que versamos, os montados dos lugares da Rua e Transleça.(15)(16)
O procedimento foi idêntico, as extensas áreas de montado são divididas em várias parcelas ou sortes (normalmente tiras de terreno com a idêntica largura), também designadas de leiras, que são atribuídas, por sorteio a um dos moradores do respectivo lugar. Como é natural, depressa os moradores com mais dificuldades económicas vão empenhar a sua sorte junto dos grandes proprietários, os aforradores da freguesia, perdendo, não raras vezes, o direito que tinham obtido no sorteio.
E assim, aquilo que era de todos e de uso comum, depressa se transforma em propriedade de alguns…
Já no século XX, veio a «praga» da eucaliptização, que conduziu à destruição da paisagem natural do montado e a uma maior erosão dos solos.
O futuro terá que passar pela recuperação desta extensa área de montado, reintroduzindo as espécies tradicionais, e criando caminhos pedonais e velocipédicos para fruição dos Alfenenses. Dessa forma, para além de melhorarmos a qualidade de vida dos Alfenenses, possibilitar-se-á uma maior vigilância dos terrenos por «vários olhos» prevenindo-se, também por essa via, uma outra praga moderna que são os incêndios florestais, e defendendo, também, os direitos dos proprietários.
Este é, no entanto, um projecto que necessita de consenso alargado para que possa ser posto em prática. É esse o esforço que temos feito no seio da AL HENNA, colocar pessoas de diferentes quadrantes políticos a debater assuntos que dizem respeito ao nosso Património Comum.
Por: Ricardo Ribeiro (*)
(*) Membro da AL HENNA – Associação para a Defesa do Património de Alfena.
(1) Iniciativa «Caminhada pelos trilhos da Serra de Alfena», realizada em 30.06.2013.
(2) Ribeiro, Orlando; Lautensach, Hermann; Daveau, Suzanne. Geografia de Portugal, Vol. III – o Povo Português; Lisboa: Edições Sá da Costa, 1987.
(3) Ribeiro, Orlando. Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. Estudo Geográfico; 8.ª Ed.; Lisboa: Liv. Letra Livre, 2011.
(4) Tombo da Igreja de São Vicente de Alfena – Colégio do Carmo da Universidade de Coimbra, ColCarmo10; Alfena: Arquivo Univ. Coimbra, 1689
(5) Moreira, Domingos A.. Alfena, a terra e o seu povo; Cucujães: s.n., 1973
(6) Ferreira de Almeida, Carlos Alberto. Romanização das Terras da Maia. Maia: Câmara Municipal da Maia, 1969
(7) Portugaliae Monumenta Historica a saeculo octavo post Christum usque ad quintum decimum – Inquisitiones, Vol. I, Fasc. 4-5, f. 506-508, 512. Lisboa: Acad. Ciências, 1897.
(8) Corpus Codicum Latinorum et Portugalensium, Vol. I, p. 152. Porto: Câmara Municipal do Porto, 1891.
(9) Cardoso, Padre Luís. Diccionario Geografico, ou noticia histórica de todas as cidades, villas, lugares e aldeias, rios, ribeiras, e serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com todas as cousas raras, que nelles se encontraõ, assim antigas, como modernas. Lisboa: Regia Officina Sylviana e da Real Academia, 1762.
(10) Sotomaior, Reitor Jerónimo da Cunha. Memórias Paroquiais, vol. 2, n.º 54, p. 473 a 478. Alfena: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1758.
(11) Recordações de infância do amigo Arnaldo Mamede
(12) Decreto de 06 de Novembro de 1836 – Divisão de território para a organização do Systema Administrativo. Lisboa: Diário do Governo N.º 283, de 29 de Novembro, 1836.
(13) Livro de Actas de Vereação da Câmara Municipal de Valongo. Valongo: Arquivo Histórico e Municipal de Valongo, 1838
(14) Lei de 28 de Agosto de 1869 ampliando as leis de desamortisação applicando esta aos passaes, baldios e bens dos estabelecimentos de instrucção publica. Lisboa: Diário do Governo N.º 201, de 06 de Setembro, 1869
(15) Auto de Partilha dos Montados do lugar da Rua da freguesia d’Alfena. Alfena: Arquivo particular de Arnaldo Mamede, 1872.
(16) Auto de Partilha dos Montados do lugar de Transleça da freguesia d’Alfena. Alfena: Arquivo particular de Arnaldo Mamede, 1874.