D. Bernarda Clara – um espião nas origens do Concelho de Valongo

«Quem é António Dias de Oliveira? Explica Silva Carvalho numa nota a uma outra carta remetida ao mesmo Agostinho José Freire, em 26 de Setembro de 1835, assinada “De v. ex. amiga cordial e obrigadíssima. Bernarda Clara”: “Nota de Silva Carvalho – Esta Bernarda Clara é António Dias de Oliveira, hoje Desembargador do Porto – que foi nosso espião.” Nem mais nem menos.» (1)

Prof. Espinha da Silveira, in «Território e Poder – Nas origens do Estado Contemporâneo em Portugal»

A artificialidade do Concelho de Valongo é um facto!

Por mais que se tentem encontrar explicações para existência desta entidade administrativa, essas colidem sempre com factos concretos incontestáveis, que corroboram a falta de unidade que sempre existiu neste Concelho.

Desde logo, as duas freguesias mais ocidentais (Alfena e S. Lourenço) integradas maioritariamente no Vale do Leça, sempre tiveram mais proximidade às suas congéneres do Concelho da Maia (ao qual pertenceram até 1836), e muito pouca afinidade com as congéneres orientais, as quais integram o Vale do Ferreira (Bacia do Douro). É inegável que a linha de cumeadas que, desde a Serra do Penedo, passando pelos Sete Caminhos, Portela e Asas do Fojo, Montes do Preto, da Vela e Cardoso e finalmente o Cabeço da Mulher Morta, constituem como que uma fronteira natural que divide as terras da Maia das terras do Sousa, sendo que a única «ligação natural» existente consiste no estreito vale da Ribeira de Cabeda, o qual permite a ligação entre Alfena e Valongo. E todos sabemos que contrariar a Natureza nunca traz bons resultados.

Por outro lado, historicamente, o médio Vale do Leça sempre integrou a Terra da Maia, e dentro da Terra da Maia, Alfena (ou, pelo menos, parte da freguesia, o histórico lugar de Alfena) chegou mesmo a constituir uma Honra autónoma, administrada pela Gafaria, com poder judicial autónomo em alguns assuntos, que respondia directamente ao Senado do Porto. (2)(3)(4)(5)(6)

Mas se é assim, por que razão foi criado o Concelho de Valongo?

Pois, é sobre esta história esquecida, e quiçá desconhecida por muitos, que nos vamos debruçar, um pouco, neste artigo.

António Dias de Oliveira nasceu em Valongo, a 20 de Julho de 1804, filho de Manuel Pereira Enes e de Ana Dias de Oliveira. Destinado a uma carreira em Direito, frequentou o curso de Leis da Universidade de Coimbra, na qual se formou bacharel em 1825. (7)

No pós-Guerra Civil, notabilizou-se, de tal modo, nas intrigas de bastidores dos primeiros anos do Liberalismo que o já citado Prof. Espinha da Silveira lhe dedica uma boa parte de um capítulo do seu livro acerca da Reforma Administrativa Liberal. (1)

Mas, contextualizemos. Com o País governado por D. Miguel, «o usurpador», um punhado de Liberais, refugiados na Ilha Terceira, criam o Governo no exílio preparando o regresso de D. Pedro do Brasil. A 16 de Maio de 1832, Mouzinho da Silveira dá origem à Reforma Administrativa Liberal, publicando três decretos sobre a Fazenda, Justiça e Administração. Dois meses depois, D. Pedro desembarca na Praia dos Ladrões (actual Memória), no então Concelho da Maia, e avança com 7.500 «bravos» em direcção à Cidade Invicta, onde ficará cercado pelo exército absolutista de D. Miguel (o famigerado «Cerco do Porto»).

Depois de dois anos cercados na Invicta, os Liberais conseguem ludibriar os absolutistas, enviando uma expedição, por mar, que desembarca no Sotavento Algarvio e avança, quase sem resistência, sobre Lisboa, onde entra a 24 de Julho de 1833, precipitando o fim da guerra e a partida de D. Miguel para o exílio, após a Convenção de Evoramonte.

O pós-Evoramonte é um período conturbado em que as facções direita e esquerda dos Liberais se vão degladiar numa luta ferroz pelo poder.

Voltando a citar o Prof. Espinha da Silveira: «Oliveira, membro da maçonaria, desde 1833 que, secretamente, desempenhava no Porto, um bastião da esquerda, as funções de informador de Freire e Silva Carvalho. A sua actividade, diligente, terá sido útil quando, em 1834, a oposição tomou a câmara daquela cidade, sendo várias as missivas que a esse assunto se referem. Se os prefeitos trabalhavam mal, lá estava Oliveira oferecendo os seus préstimos para “fabricar” eleições. Em troca pedia ao ministro a melhor atenção para o bacharel José Vitorino, portador da missiva, “moço de muito merecimento e gosto literário” que estava a necessitar de emprego.» (1)

Para os mais distraídos, fazendo a tradução para o inglês, mais em voga actualmente, moço=boy, nada de novo, portanto…

Mas é sobretudo no debate sobre a instituição dos distritos que a astúcia e a espionagem de Dias de Oliveira, ao serviço de Silva Carvalho e Agostinho Freire (Grão-mestre e Grande Administrador do Grande Oriente Lusitano, respectivamente) vai atingir o seu clímax, surgindo, em 8 de Abril de 1835, Dias de Oliveira como primeiro subscritor de um projecto de Lei sumário que, basicamente, colocaria nas mãos do Conselho de Ministros a definição dos distritos, a nova entidade administrativa que viria a substituir as anteriores comarcas.

No entanto, Oliveira era cauteloso e recomendava a Freire, em Julho de 1835, «o maior segredo das nossas ligações e até certa aparência de hostilidade». (1)

António Dias de Oliveira, ou «D. Bernarda Clara», o espião...

Perante toda esta actividade nos corredores do poder, não seria de estranhar que, na subsequente reforma dos concelhos, a «nossa D. Bernarda Clara» tenha logrado conseguir que a sua terra natal fosse erigida em sede de um novo concelho, surgido do desmembramento de dois grandes antigos concelhos, o da Maia (freguesias de Alfena, Asmes [Ermesinde] e Valongo) e o de Aguiar de Sousa (Campo, Sobrado e Gandra). Estávamos em Novembro de 1836, e Passos Manuel, um outro maçon, subscreveu o Decreto. (8)

A artificialidade geográfica do novo concelho, já atrás explanada, é tal que a sua criação apenas se justifica por estas intrincadas lutas pelo poder, onde o caciquismo teve uma forte palavra a dizer.

Extracto do Decreto de Criação dos Concelhos (Novembro de 1836)

No Termo do Porto (designação dada às terras em redor da Cidade Invicta) tínhamos, no Antigo Regime, 4 grandes concelhos: Feira (Terra de Santa Maria), Maia, Refojos e Aguiar de Sousa. A par desses 3 grandes concelhos, surgiam depois algumas divisões mais pequenas, normalmente coutos ou honras, como era o caso do Couto de Rio Tinto, o Couto de Santo Tirso, o Bailio de Leça, o Couto de Campanhã, a Honra de Aveleda, o Julgado de Bouças, entre outros. Com a Reforma do Liberalismo, os grandes concelhos de outrora perdem importância, alguns são, pura e simplesmente, extintos (casos de Aguiar de Sousa e Refojos de Riba d’Ave) em processos, por vezes, pouco claros e, muitas vezes, ditados pelas lutas em os vários caciques liberais, recentemente chegados ao poder. Essas lutas vão perdurar ao longo dos primeiros anos do Liberalismo, com várias alterações no mapa administrativo, sempre ao sabor dos ventos do caciquismo, culminando no célebre Código Martens Ferrão que, de reforma radical do mapa administrativo, rapidamente passou a um rotundo falhanço, não sobrevivendo à Revolta da Janeirinha (o novo mapa administrativo apenas esteve em vigor cerca de um mês entre Dezembro de 1867 e Janeiro de 1868).

Concelho de Valongo em 1836

Mas, voltando à década de 30, a situação política em Lisboa estava em perfeita ebulição, e no meio de golpes e contra-golpes palacianos, Dias de Oliveira acaba eleito Vice-presidente do Congresso Constituinte que redigirá a efémera Constituição de 1838, assumindo interinamente a Presidência entre Março e Maio de 1837, e acabará mesmo nomeado Presidente do Conselho de Ministros no Verão desse ano. Fazendo uso de uma terminologia mais recente, um «Verão Quente»…

No entanto, tão depressa e inesperadamente é nomeado, em Junho, como é demitido, em Agosto. No entretanto, Valongo é elevada a Vila e o recém-criado Concelho perde a sua sexta freguesia, Gandra, para Paredes, terra de outro importante cacique que despontava…

Por: Ricardo Ribeiro (*)

(*) Membro da AL HENNA – Associação para a Defesa do Património de Alfena.

(1) SILVEIRA, Luís Nuno Espinha da; TERRITÓRIO E PODER, nas origens do Estado contemporâneo em Portugal; Cascais; Patrimónia; 1997

(2) MOREIRA, Pe. Domingos A. e outrosALFENA, a terra e seu povo; Cucujães; s.n.; 1973

(3) Portugaliae Monumenta Historica – Inquisitiones,Vol. I, fasc, 4-5, p 506 a 508 e 512; Lisboa; Academia de Ciências; 1897

(4) Corpus Codicum Latinorum et Portugaliensium,Vol. I, p 152; Porto; s.n.; 1891

(5) Leitura Nova – Livri primeiro das honras e devassos d’Allem Doyro – Livro 48, f. 44v-45; Lisboa; Arquivo Nacional Torre do Tombo; 1521

(6) Cardoso, Pe. Luís. Diccionario geografico, ou noticia historica de todas as cidades, villas, lugares, e aldeas, rios, ribeiras, e serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com todas as cousas raras, que nelles se encontraõ, assim antigas, como modernas. Lisboa : Regia Officina Sylviana e da Real Academia, 1747-51.

(7) Processo de Matrícula de António Dias de Oliveira; Coimbra; Arquivo da Universidade de Coimbra; 1820-1825 (PT/AUC/ELU/UC-AUC/B/001-001/O/000202)

(8) Decreto de 6 de Novembro de 1836 (publicado de forma resumida na edição do Diário de Governo de 29 de Novembro) da nova Divisão Administrativa do Território dos Reinos de Portugal e Algarves e das Ilhas Adjacentes; cópia existente no Arquivo Histórico Municipal do Porto e no Arquivo Histórico Municipal da Vidigueira; Lisboa; Imprensa Nacional; 1836

A publicação original do jornal «A Voz de Ermesinde» aparece creditada a Arnaldo Mamede, mas tal não passou de uma gralha tipográfica.

Publicação original em 15.04.2014