A Peste em Alfena e a construção da capela ao bem-aventurado S. Roque
“A hermida do bem aventurado Sam Roque q estava q está no resio da Codesseira saindo dalfena Junto a Casa do ferreiro António Gonçalves tem de renda pera sua fabrica quinhentos reis cada hu anno p.ª sempre ao quais lhe dotárão Pero João cento e settenta reis sobre as suas Cazas em q vive no meio do lugar dalfena (…); e Gonçalo Pires Vendeiro lhe dotou outros cento e settenta reis sobre suas Casas da estalagem (…) do mesmo lugar dalfena E o ditto Pero Ferreira dotou a ditta hermida cento e sessenta reis…” (1)
Assim iniciou, na última década do século XVI, o Pe. Domingos Gonçalves, o primeiro dos livros dos Registos Paroquiais de Alfena, com a referência à dotação para construção da Capela de São Roque, o santo protector da peste. Mas qual a origem desta devoção do Povo de Alfena, tão importante que justifica «honras de abertura» dos Registos Paroquiais?
Finais do Século XVI, reinava em Portugal Filipe II de Espanha, e Alfena, apesar de integrar a Terra da Maia, era uma pequena vila com alguma autonomia que, em alguns assuntos respondia directamente perante o Senado da Cidade do Porto. Por esta altura, episódios de peste eram tão comuns que se multiplicavam as devoções a São Roque por todo o país, e Alfena não só não fugiu à regra como, de certa forma, deu o mote.
Efectuando uma pequena estatística dos primeiros anos de Registos Paroquiais da Freguesia de Alfena, obtemos os seguintes números: (1)
Uma breve análise aos números e chegamos à conclusão que 1599, primeiro ano do reinado de Filipe III de Espanha (II de Portugal), foi um ano trágico na freguesia, não só pelo baixo número de baptimos (aproximação ao número de nascimentos), mas, sobretudo, pela elevada mortalidade verificada. E, esmiuçando um pouco mais os registos, concluiremos que, dos 29 óbitos registados em Alfena nesse ano, 27 ocorreram entre o início do mês de Setembro e meados do mês de Novembro, com elevada concentração nos lugares de Alfena (actual lugar da Rua) e Baguim, vitimando vários elementos de algumas famílias, alguns deles com menção expressa no registo da causa da morte como sendo «A Peste».(1)
Esta Peste, também conhecida pela Peste Negra durante, a Idade Média, foi uma epidemia de Peste Bubónica que assolou Portugal nesse ano de 1599, sendo que a concentração da mortandade em Alfena foi, de tal forma, elevada que motivou uma referência expressa do monarca à freguesia: (2)
“Dom Phelippe per graça de Deus Rej de Portugal E dos Algarues daquem E dalem mar em Affrica senhor de guine ett.ª faço saber a uós licenciado Simão do Vale Peixoto, Corregedor E Prouedor da comarqua da cidade do Porto que auendo respeito ao que os oficiais da camara da dita cidade me escreuêrão de como em alguns lugares do termo da dita cidade Vai o mal de peste em crescimento primcipalmente nos lugares dalfena E da Pica E que comuinha acodirse aos Imfermos E Impedidos com tudo o de que tivessem necessidade, E Vista a informação que me emuiaste de como não auia outra cousa mais conveniente de que podesem ser prouidos que do dinheiro do crescimentos das sisas da dita cidade Ej por bem E me apraz por os ditos oficiais da camara mo enuiarem assi pedir que eles possão despender do dinheiro dos crecimentos das cisas a conthia que Vos parecer que será necessária pera a cura E polimento dos enfermos E impedidos do dito mal, E pela mesma maneira se pagará o que per conta liquida achardes que he devido, E se gastou no Impedimento do lugar de Roriz, E huma E outra despesa leuareis em conta à pessoa sobre que o dito dinheiro for carregado em Recepta tomando a primeiro de como se despendeo.
Ell Rej nosso senhor o mandou pelos Doctores Damião daguiar. E Jeronimo pereira de sá ambos do seu conselho E Seus desembargadores do paço. Gaspar d’Abreu a fez em Lisboa a vinte E seis de Nouembro de mil E quinhentos e nouenta e noue. João da Costa a fez escrever. Jeronimo pereira de sá, Damiam de aguiar”
A amplitude deste episódio de peste foi de tal forma alarmante que a ermida em honra de São Roque, foi rapidamente construída, bem no meio do então «Rossio da Codesseira», sendo emitido alvará de licença para celebração de missa em Fevereiro de 1601, pouco mais de um ano após o episódio da Peste. (1)
A capela, simples, ainda hoje lá permanece, ali bem à margem da moderna N105, já do Rossio (ou praça larga e espaçosa) da Codesseira hoje pouco resta, mas esse é um tema que ficará para futura oportunidade.
Precisamente três séculos depois deste episódio atrás aflorado, em 1899, tivemos na cidade do Porto a última grande epidemia de Peste Bubónica. A tenacidade que o Dr. Ricardo Jorge demonstrou, quer no combate à epidemia, quer na posterior implementação de medidas de saúde pública motivaram a que tivesse sido atribuído o seu nome ao Instituto Nacional de Saúde, facto que ainda hoje se verifica.
A título de exemplo, para contenção da grave epidemia, o Dr. Ricardo Jorge logrou convencer o Governo, liderado por José Luciano de Castro, a colocar os militares a executar um rigoroso cerco à cidade Invicta, cerco esse garantido pelo exército desde Leça da Palmeira a Ermesinde, seguindo o rio Leça, dali a Valbom, onde atravessava o Douro para Avintes e daí até ao mar na Madalena. No mar, a Marinha de Guerra completava o cerco impedindo entradas ou saídas da Invicta, permitindo dessa forma, primeiro o confinamento da epidemia, e depois o necessário tratamento aos enfermos. Medidas hoje unanimemente reconhecidas como exemplares no combate a uma epidemia daquele género, mas que na altura geraram fortes protestos populares, incentivados por alguns grupos políticos, e que forçaram a que o próprio Dr. Ricardo Jorge tivesse que abandonar a cidade.(3)(4)(5)
Por: Ricardo Ribeiro (*)
(*) Membro da AL HENNA – Associação para a Defesa do Património de Alfena.
(1) Livro de Mistos N.º 1 da Paróquia de Alfena E/27/4/2-5.1, fls. 4 e 232. Alfena: Arq. Distr. Porto, 1593-1662.
(2) Corpus Codicum Latinorum et Portugalensium, Vol IV, p. 178; Porto: 1938
(3) Biografia do Dr. Ricardo Jorge (Universidade do Porto) – https://sigarra.up.pt/up/pt/web_base.gera_pagina?P_pagina=1001233
(4) Jorge, Ricardo de Almeida. A peste bubónica no Porto, 1899, Porto: Repartição de Saúde e Hygiene da C.M. Porto, 1899
(5) PONTES, David, O cerco da peste no Porto-Cidade, imprensa e saúde pública na crise sanitária de 1899, Porto: FLUP, 2012