A emigração para o Brasil e as suas marcas na paisagem urbana de Alfena (1)

“Até agora não podemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo, a terra é em si de muitos bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo de agora assim os achamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem.” (2)

Neste pequeno extrato da célebre Carta ao Rei D. Manuel que Pero Vaz de Caminha, escrivão da Feitoria de Calecut, enviado na armada sob o comando de Pedro Álvares Cabral, descreve em 1 de Maio de 1500, a Terra de Vera Cruz “descoberta” alguns dias antes.

Curiosa e, de certo modo, premonitória a semelhança que estabelece com a sua região natal, o Entre-Douro-e-Minho, como que adivinhando o futuro que estava para vir, pois seria desta Região do Noroeste Português que partiriam levas sucessivas de colonos e emigrantes que, maioritariamente, nos Séculos seguintes viriam a promover a colonização e o povoamento dos imensos territórios que hoje constituem a República Federativa do Brasil.

Todos nós temos, por certo, conhecimento de familiares próximos ou mais afastados, de simples vizinhos ou conhecidos, que abalaram das suas terras de origem, temporária ou definitivamente, à procura de melhores condições de vida no Brasil.

 

Nos anos seguintes após a “Descoberta”, o seu povoamento foi pouco significativo com algumas pequenas Feitorias no litoral para exportação do Pau Brasil e por degredados, pessoas condenadas em Portugal por crimes diversos, largados e abandonados à sua sorte, alguns dos quais conseguiriam integrar-se nas comunidades indígenas locais.

A colonização inicia-se, de facto, em 1530, com a criação das Capitanias Hereditárias, atribuídas a elementos da Nobreza, que recrutavam colonos aos quais concediam Sesmarias, largas áreas de terrenos com prazos fixados para a exploração e desenvolvimento da agricultura e pecuária, principalmente o cultivo da cana-de-açúcar.

 

A notícia chegada a Portugal da descoberta de grandes jazidas de ouro originou em pouco tempo a partida de grande número de homens, grande parte jovens, originários do Minho, em busca de fortuna, uma autêntica corrida ao ouro. Contudo, esta emigração não substituiu a anterior, colonos e emigrantes sempre coexistiram.

Este surto migratório, de tão intenso, fez despovoar de homens aldeias inteiras do Noroeste, de modo tal que o Governo se viu obrigado a impor restrições à emigração com as leis publicadas em 1709, 1711, e 1720.

“Tendo sido o mais povoado, o Minho é hoje um estado no qual não há pessoas suficientes para cultivar a terra”, escreveu um autor da época.(3)

Entre finais do Sec. XVIII e a primeira metade do Sec. XIX a emigração sofreu um forte decréscimo, comparando com o período anterior, contudo, prosseguiu, agora em muito menor escala, em termos de quantidade, porem, de qualidade superior, com a partida de jovens adolescentes instruídos, filhos segundos ou terceiros de agricultores mais ou menos abastados, com idade de 14 anos e até menos, para assim escaparem serviço militar.

Estes jovens recomendados aos cuidados de parentes ou simples conterrâneos, comerciantes estabelecidos no Rio de Janeiro, S. Paulo, Salvador e outras cidades, não raras vezes, sucedendo-lhes à frente dos respectivos negócios.

 

Alguns regressaram ricos às suas terras, compraram propriedades, construíram grandes casas, possuíram bens móveis e imóveis, muito dinheiro e acções em grandes companhias e bancos.

Por vezes, por falta de sucessores directos, decidiram legar às suas comunidades asilos, hospitais, escolas e outros melhoramentos, tornando-se mecenas e benfeitores, merecendo, justamente, o reconhecimento e consideração dos seus concidadãos.

 

Alfena, terra situada na província de Entre-Douro-e-Minho, a que mais gente mobilizou para a colonização e povoamento do Brasil, não podia deixar de dar o seu contributo.

Chegaram até nós vários documentos que testemunham a presença de Alfenenses no Brasil, desde os primórdios da colonização no Sec. XVI até aos tempos mais recentes:

Gaspar Dias Matado, metade cristão-novo, natural de Alfena, termo do Porto, barqueiro de profissão, filho de Manuel Dias e Isabel Afonso, casado com Beatriz Luís, acusado do crime de “proposições heréticas”, caiu nas garras da Inquisição, em 1593, no Recife, tendo sido condenado em “auto de fé privado, por sentença de 18-08-1595”.(4)

Manuel Moreira Bello, natural do lugar da Rua, Alfena, contraiu matrimónio cerca de 1720, em S. Salvador da Baía, com Mariana Josepha de Meneses, natural de Luanda, Angola, tiveram quatro filhas das quais houve larga descendência, espalhada por todo o território Brasileiro.(5)

Um outro Moreira Bello, de seu nome José, também natural do lugar da Rua, Alfena, talvez sobrinho do anterior, proprietário de duas fazendas e de uma dezena de escravos, no Estado de Minas Gerais, fez testamento em 1804:

“Em nome da Santíssima Trindade (…) eu José Moreira Bello, estando em meu perfeito juízo, doente de cama da moléstia que Deus foi servido dar-me, faço meu testamento da forma seguinte:

Declaro que sou natural de S. Vicente de Alfena, Bispado do Porto, filho legítimo de Silvestre Moreira Bello e de sua mulher Brites Mendes de Oliveira, já falecidos (…) declaro que nesta terra de Minas fui casado com Quitéria Maria de Jesus (…) tivemos um filho de nome Pedro…”(6)

Os irmãos Francisco e José Martins Borralho, nascidos em Alfena, por volta de 1695, provavelmente no lugar da Ferraria,(7) onde, ainda hoje, não faltam Borralhos agora como alcunha, porque há muito desistiram do seu apelido ancestral, talvez por conotação pejorativa, emigraram para Minas Gerais nos primeiros anos de 1700, tempo da corrida ao ouro, dedicados à mineração ou ao garimpo, em busca da tão ansiada fortuna.

Aí, também eles desistiram do apelido Borralho, adoptando, em seu lugar, o nome da sua terra natal, passaram a ser os Martins Alfena.

É bem provável que após exaustão das jazidas se tenham dedicado à agricultura, afinal a sua ocupação dos tempos de infância pelos campos da Arrancada, dos Agueiros ou da Bajanca, ou a apascentar o gado nas terras mimosas das nascentes de Saínhas.

Certo é que alguns dos filhos conseguiram obter carta de Sesmarias, onde fundaram as suas fazendas, no limite das quais viriam a promover a edificação de uma pequena ermida em honra de N. Sra. das Dores e S. José, originando, tempos depois, a implantação, à sua volta, de um arraial, o Arraial de S. José dos Alfenas.

Assim nasceu Alfenas, hoje uma importante cidade do Estado de Minas Gerais, com 75.000 habitantes, que deve a sua fundação à nossa gente, para nós, Alfenenses, justo motivo de orgulho.

Referimos em anterior crónica nesta página o Comendador Manuel Moreira Duarte Matos, grande comerciante da Praça do Rio de Janeiro, sem esquecer os sócios da importante Sociedade Vieiras, Mattos & Cia, o seu irmão Francisco, bem como seu sobrinho e afilhado, o também Comendador e grande benemérito Manuel Martins Ferreira de Matos e seus irmãos Vicente e José.

A Vieiras Mattos & Cia, fundada em 1866, era detentora, no primeiro quartel do Sec. XX, da maior quota de produção e comercialização de sal, o seu principal negócio, em todo o Brasil. Com filiais em vários Estados estendeu, nessa época, a sua actividade à indústria cerâmica, águas minerais, transportes e agricultura.(8)

Como sabemos, deve-se ao Comendador Ferreira de Matos a construção do belo edifício da Escola Idalina Matos, inaugurada em 1927, hoje Centro Cultural.

Manuel Luís Arruda, natural do lugar do Reguengo, cedo partiu para o Brasil onde terá acumulado bom pecúlio, o suficiente, para compor cunhados e cunhadas, permitindo-lhe o consórcio, cerca de 1850, com Maria Antónia Martins Moutinho de Ascensão. Não só compôs os herdeiros como adquiriu diversas propriedades, aumentando assim a sua casa agrícola, em Punhete(9), vindo a construir o edifício lá existente, que, aliás, não concluiu, restou toda uma ala por construir, porque, entretanto, ocorreria o seu falecimento.

 

Por último, uma referência aos Almeidas ou de uma forma mais abrangente aos “Padeiros”, alcunha que lhes ficou pela profissão dos antepassados, oriundos de Valongo.

Florindo de Sousa Almeida, nasceu na Codiceira, em 19-03-1843, terá partido para o Brasil por volta de 1870, com seu irmão Manuel e seu primo António Marques da Fonseca (Marques Padeiro), constituindo em sociedade uma firma de serração de madeiras e carpintaria, sua anterior profissão. Mais tarde chegaram os sobrinhos Carlos dos Santos Almeida, futuro genro de Florindo e seu sucessor à frente da Firma, António dos Santos Almeida e António Bento Ferreira, sobrinho-neto.

Regressados a Alfena no início do Sec. XX, Florindo Almeida encetou a construção dos edifícios sitos na Rua 1º de Maio, 1876 (Baguim) e Rua 1º de Maio, 2548 (Codiceira), seu irmão Manuel, na Rua 1º de Maio, 2584 (Codiceira), António Marques da Fonseca o edifício situado na Rua de S. Lázaro, (Restaurante Casarão) e, finalmente, Carlos dos Santos Almeida o mais belo e imponente edifício que em Alfena existiu, o Palacete, onde hoje se situa o Salão Plaza, mais metro menos metro, destruído, em 11-01-1963, por um violentíssimo incêndio.

Eis pois, as marcas que os “nossos Brasileiros” torna-viagem nos deixaram e que desde há um Século moldam a paisagem urbana de Alfena.

Por: Arnaldo Mamede (*)

(*) Membro da AL HENNA – Associação para a Defesa do Património de Alfena.

(1)  Devido à sua extensão, o artigo foi originalmente dividido em duas partes, para efeitos de publicação no jornal «A Voz de Ermesinde» (15.12.2013 e 31.12.2013). Aqui optamos por o reunir numa só republicação, obtendo assim ganhos de contexto.

(2)  Carta de Pero Vaz de Caminha a D. Manuel I (de achamento da Terra de Vera Cruz). Gavetas, Gav. 8, mç. 2, n.º 8; Lisboa: ANTT, 1500.

(3)  Serrão, Joel. Conspecto histórico da emigração portuguesa, in Análise Social, Vol. III, nº 32, 1970.

(4)  Tribunal do Santo Ofício – Processo de Gaspar Dias Matado. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 11133, Lisboa: ANTT, 1593

(5)  Manuel Moreira Bello nasceu em Alfena, no lugar da Rua, em 17.06.1677, casou em S. Salvador da Baía (entre 1717 e 1720) com Marianna Josepha de Menezes, natural de Luanda, de quem teve vários filhos, falecendo em 29.06.1738, na recém-fundada cidade do Rio Grande (hoje no estado brasileiro do Rio Grande do Sul).

(6)  Inventário e Testamento de José Moreira Belo. Caixa 552. Museu Regional de São João del Rei: 1804

(7)  O pai dos Borralhos era natural do lugar da Ferraria, já os filhos nasceram no lugar da Rua, o Francisco a 04.10.1707 e o José a 26.02.1716, segundo os Registos Paroquiais de Alfena.

(8)  Impressões do Brazil no Seculo Vinte, editada em 1913 e impressa na Inglaterra por Lloyd’s Greater Britain Publishing Company, Ltd., com 1.080 páginas, mantida no Arquivo Histórico de Cubatão/SP.

(9)  Casa do Barrela de Punhete

Publicação original em 15.12.2013 (1.ª parte)

Publicação original em 31.12.2013 (2.ª parte)