A Delimitação da freguesia de Alfena – 1689/90 (2) [Sobrado]
Regressemos, uma vez mais, à questão dos limites da Freguesia de Alfena.
Sem grandes discrepâncias, pacíficas, portanto, no que respeita às extremas com Água Longa, S. Pedro Fins e Ermesinde, verificam-se, porém, erros importantes no que diz respeito a Folgosa e um enorme erro grosseiro, relativamente a Valongo e a Sobrado.(1)
Entre a verdade histórica, fundamentada em provas documentais de verosimilhança incontestável, coincidente com o facto de os terrenos se encontrarem, desde sempre, registados em Alfena, quer na Conservatória do Registo Predial, quer na Matriz Predial Rústica e Urbana, e a actual carta da CAOP vai uma diferença de cerca de 5,5 Km2, o mesmo que 550 Hectares, correspondentes, aproximadamente, a 550 Estádios de Futebol, o que representa perto de um terço da superfície da Freguesia de Alfena.
Urge, pois, que cidadãos responsáveis e decisores políticos, informados e esclarecidos, face à abundante documentação histórica, alguma já divulgada por este e outros meios, e à realidade prática, se sentem à volta de uma mesa e, de forma serena, civilizada, sem reservas ou constrangimentos de quaisquer espécies, se ponha termo a esta questão, repondo a verdade.
Pelo meu amigo Ricardo Ribeiro, jovem responsável máximo da AL HENNA, que comigo alterna nesta página, estudioso entusiasta das coisas de Alfena, já aqui foi explicado com a profundidade, rigor e clareza que lhe são características, os factos históricos que estiveram na origem da delimitação de 1689/90.
O detentor do Direito de Padroado, com poderes para nomeação do Pároco e para cobrar o dízimo, o tributo religioso, passou a ser, a partir de 1543, o Colégio do Carmo da Universidade de Coimbra por cedência do Bispo do Porto, D. Frei Baltazar Limpo, sendo Pároco de Alfena seu irmão o Padre Melchior Limpo.
Anos depois, já em finais do Séc. XVII, mais precisamente em 1689/90, sendo Reitor do referido Colégio Frei Roque de Santa Teresa, foi o Doutor Cristóvão Alão de Morais nomeado, por Provisão Real, para presidir à delimitação de Alfena, incumbência que concretizou, juntamente com os representantes das freguesias (louvados), escrivão e porteiro (pregoeiro), com a implantação de marcos, em esteios de granito, com a palavra CARMO gravada na face voltada para o território Alfenense, ou com inscrições gravadas em rochas nos locais onde estas não permitiam a implantação de marcos.
Interessa recordar que, acordando os louvados a necessidade de um novo marco, o Juiz ordenava a sua colocação, ao mesmo tempo que o “porteiro”, em voz bem alta, lançava o pregão: “que sob pena de quatro anos de degredo para as partes de África e cem mil Reis para as despesas da Repartição ninguém entendesse com o dito marco“.(2) Pregão, pleno de actualidade, nos tempos que correm, que deveria ser ouvido e entendido pelos actuais e próximos futuros decisores políticos, já que, lamentavelmente, o não foi pelos seus antecessores.
Historicamente ligados a Alfena estão duas personalidades importantes dos Sec. XVI e XVII, referidas acima, D. Frei Baltazar Limpo e o Doutor Cristóvão Alão de Morais que, por direito próprio, deveriam fazer parte da Toponímia Alfenense.
Frei Baltazar Limpo nasceu em Moura em 1478. Foi Catedrático de Teologia na Universidade de Lisboa, nomeado por D. João III Pregador da Capela Real e confessor da Rainha D. Catarina. Em 1536 Bispo do Porto e Arcebispo de Braga a partir de 1550. Teve importante participação no Concílio de Trento em 1546.(3)
Cristóvão Alão de Morais nasceu em S. João da Madeira em 1632 e faleceu no Porto em 1693. Jurisconsulto, exerceu diversos cargos, Juiz de Fora em Torres Vedras, Desembargador na Relação do Porto e Corregedor do Cível. Foi escritor e, sobretudo, genealogista insigne. A sua obra mais importante a “Pedatura Lusitana“, em doze volumes, é uma referência da Genealogia Portuguesa.(4)(5)
A delimitação de Alfena com Sobrado
Tal como sucede com Valongo a delimitação com Sobrado enferma de uma enorme discrepância entre os limites correctos, fundamentados na verdade prática, de facto, que é coincidente com a verdade histórica e aqueles que são hoje considerados os limites oficiais.
Atendamos à descrição original constante no Tombo:(2)
“T.º da demarcaçam da frg.ª de Santo André de Sobrado
Aos trinta dias do mês de Junho de mil seis sentos oitemta e noue annos em a portela do foyo que he em a frg.ª de Alfena sita em o Conc.º da Maya termo e jurisdiçam da muyto nobre e sempre leal sidade do Porto ahi adomde foi uindo o doutor Christouam Alam de Morais juis do Tombo do Coll.º de nossa sr.ª do Carmo da Uniuersidade de Cohimbra em companhia de mim escrivam do dt.º Tombo arrequerimento de Manoel de Payua, procurador do dt.º Coll.º e logo ahi perante elle juis pareceo prezente o dt.º Manoel de Payua e por elle foi requerido a elle juis que elle fizera sitar ao Reverendo Franc.º Frr.ª marques abb.e da frg.ª de Santo André de Sobrado p.ª effeito de asistir a demarquaçam e deuizam de entre a sua frg.ª com a dt.ª de Alfena, e que elle juis o mandace apregoar p.lo porteiro Manoel Franc.º o coal o apregoou e debaixo do segundo pregam logo apareseo o Reverendo Padre Domingos de Souza, coadjutor da dt.ª frg.ª de Santo André de Sobrado e por elle foi apresentada huma procuraçam bastante feita e asignada p.lo Reverendo padre Franc.º Frr.ª marquez abb.e da dt.ª frg.ª cuja letra e signal o escriuam conheceo ser feita p.la mao do d.º Reverendo abb.e por uirtude da coal disse era seu procurador bastante p.ª asestir a d.ª demarquaçam e deuizam dos d.os montados o que uisto por elle juis a d.ª procuraçam ter com ella poder p.ª o d.º effeito lhe mandou nomeasse por sua parte hum homem que foce seu louuado p.ª que com o medidor geral fizecem a d.ª demarquaçam e deuizam e logo elle d.º procurador nomeou a Jorge Joam laurador e morador em a d.ª frg.ª de Sobrado ao coal elle juis do Tombo mandou uir perante sim e lhe deu o Juram.º dos santos euangellos sob cargo do que lhe encarregou e mandou que bem e uerdadeiramente fizece a dita demarquaçam e devizam por entre as frg.as com forme entendece em suas consiensiaz o que elle d.º louuado dipois de ouuido o d.º Juram.º asima prometeo fazer de que fis este termo que elle procurador afignou com os ditos louuados e eu Manoel de Souza Barboza escriuam do dito Tombo que o escreuy. // O Padre Domingos de Souza // Franc.º da Costa // de Jorge Joam louuado. (6)
Primejramente logo elles louuados foram medimdo pela deuizam de emtre as freiguezias do d.º sitio e portelo do fojo em uolta direito p.ª o nassente the o alto da serra adomde chamam o picoto Crasto iunto à estrada, disseram os louuados era nesessario leuantar hum marco o que elle juis mandou leuantar e fiqua de distancia do outro marco a este quinhentas nouenta e coatro u.as
E logo elles louuados foram medimdo pela deuizam de emtre as frg.as dir.to p.ª o nassente em uolta pela estrada the domde chamam o foyo do Aluelo, disseram eles louuados era nesessr.º leuantar hum marco o que elle juis mandou leuantar e lansar prégam na forma em que os mais atras se declara e fica de distancia do outro marco a este duzentas quarenta e coatro u.as
E logo elles louuados foram medimdo na mesma forma atras pela deuizam de emtre as frg.as direito p.ª o nasente adomde chamam a portella de ual de grade junto à estrada e ahi disseram os d.os louuados era nesesario outro marco o que elle juis mandou leuantar e lansar prégam na forma dos mais e fiqua de distancia do outro a este duzentas setemta e sete uaras.
E logo elles ditos louuados foram medimdo pela deuizam de emtre as freiguezias direjto p.ª o nasente the o alto da serra adomde chamam sobrejro uentoso em uolta pela estrada sempre augas vertentes e ahi por estar hum outejro grande de pedras adomde finda a deuizam emtre as frg.as e começa a demarquaçam da frg.ª de Sam Juliam [N.R.: São Julião de Água Longa] disseram elles louuados podia seruir de marco em q. se fes hua Crus o q. elle juis ouue por bem e fiqua de distancia de outro marco a esta penha coatro cemtas e uinte e sinco uaras.
E por este modo disseram elles louuados tinham feito a dita medição, demarquaçam e deuizam bem e uerdadeiramente comforme o emtendiam em suas consiensias sem odio nem affeiçam e que na d.ª forma dauam suas temsois e por estar prezente o dito procurador do Reuerendo abb.e o padre Domingos de Souza por elle foi dito que elle em nome do dito seu Constetuinte daua esta dita mediçam, demarquaçam e deuizão por bem feita e não duuidaua que nesta forma se lansáce em Tombo de que fis este termo que elle d.º procurador asignou com os d.ºs louuados e eu Manoel de Souza Barboza escriuam do d.º Tombo o escreuj, o p.r D.os de Souza, Franc.co da Costa, de Jorge Joam louuado.
E sendo asim feitas as ditas medissois e demarquasois das d.as frg.as como dito fiqua logo eu escriuam fis estes autos comcluzos a elle juis do Tombo p.ª os semtensear de que fis este termo, Manuel de Souza Barboza escriuão do d.º Tombo o escreuj.”
Esta delimitação de Alfena com Sobrado é de todas a mais simples de reconhecer. Basta seguir a estrada que liga Valongo a Agrela, pela linha de cumeada, as chamadas «águas vertentes». Para Noroeste estas correm para a bacia hidrográfica do Leça, é território pertencente a Alfena, para Sudeste correm para o Ferreira que, fazendo parte da bacia hidrográfica do Douro, é território da Freguesia de Sobrado.
Trata-se de uma delimitação absolutamente natural.
Com início na Portela do Fojo, fim do limite com Valongo, local de fácil localização, é, na referida estrada, o ponto mais alto entre o ribeiro de Fontelas, afluente do Ferreira e, a uma centena de metros para Nascente, a linha de água que desce para o ribeiro de Tabãos, junto ao acesso a Quintarrei.
Sempre estrada fora, para Nascente, 594 varas até ao picoto Crasto, mais 244 varas, pela estrada, até ao Fojo do Alvelo, e, deste, “pela estrada sempre augas vertentes“, ao Alto do Sobreiro Ventoso, onde tem início o limite com Água Longa, são mais 425 varas, ao todo 1263 varas que correspondem a 1390 metros.
Tem, pois, cerca 1,4 Km de extensão a fronteira de Alfena com Sobrado.
Duas pequenas notas para dois locais descritos no Tombo: Fojo do Alvelo e o picoto Crasto.
No primeiro caso, trata-se de uma galeria aberta em solo rochoso que tudo indica fazer parte da mineração de ouro, durante a ocupação romana, em Alfena, “além Leça”, que o Prof. C. A. Ferreira de Almeida faz referência na sua obra “Romanização das Terras da Maia“.(7)
No segundo caso, a ignorância ou o desleixo, ou os dois juntos, aliados à força bruta das escavadoras e buldózeres, na plantação de eucaliptos, destruíram o que restava de um lugar com interesse Histórico e Arqueológico, dos poucos existentes no Concelho no que se refere à Civilização Castreja.
Durante as “Caminhadas pelos limites”, levadas a cabo pela AL HENNA, no troço citado, não foi encontrado qualquer marco descrito no Tombo, embora, pela minúcia da descrição dos acidentes geográficos, os lugares onde foram implantados sejam de fácil localização. Há cerca de 20 anos ou talvez mais a C. M. de Valongo encetou obras de movimentação de terras para modernizar a estrada que vimos referindo, com a intenção de ligar Valongo à Zona Industrial de Sobrado, na extrema com Agrela, projecto que ficou pelo caminho. É provável que os marcos, até aí existentes, tenham desaparecido algures soterrados nas obras mal começadas e nunca acabadas.
Em 26 de Junho de 1874, na sequência da Lei de 28 de Agosto de 1869(8), teve lugar o Auto de Partilha dos montados do lugar de Transleça, pelos moradores deste e dos lugares da Codiceira, Xisto e Outeirinho que, desde tempos remotos, usufruíam em comum destes maninhos no corte de lenhas, matos, na pastorícia de gado miúdo e graúdo, etc. Algumas parcelas (as chamadas sortes) situadas no Fojo e na Fonte da Prata têm como confrontação do lado Sul o limite com Sobrado («o caminho d’Agrella»).(9)
Por: Arnaldo Mamede (*)
(*) Membro da AL HENNA – Associação para a Defesa do Património de Alfena.
(1) À data do artigo, o erro da CAOP era tão gritante que Alfena nem sequer confrontava com Sobrado. Os limites orientais oficiais da freguesia, foram entretanto já corrigidos pela Lei N.º 33/2017, de de 02 de Junho. O limite entre Alfena e Sobrado corresponde quase na totalidade ao limite do Tombo de 1689. Na imagem publicada abaixo apresentamos o actual limite legal da CAOP (a azul) e o limite entre Alfena e Sobrado demarcado a 30 de Junho de 1689, conforme texto transcrito no nosso artigo.
(2) Tombo da Igreja de São Vicente de Alfena – Colégio do Carmo da Universidade de Coimbra; ColCarmo10; Alfena: Arquivo Univ. Coimbra, 1689.
(3) D. Rodrigo da Cunha, Bispo do Porto. CATALOGO E HISTORIA DOS BISPOS DO PORTO – Offerecida a Diogo Lopes de Souza, Conde de Miranda, & Governador da Relaçaõ, & caza do Porto, & se districto: do Conselho de sua Magestade. Porto : João Rodrigues impressor do Bispo, 1623.
(4) Martins, Mário Resende; Teixeira, José Fernando S. e Silva, Manuel Dias. Monografia de São João da Madeira. Porto: Porto, Sociedade de Papelaria, Lda., 1944.
(5) Morais, Cristóvão Alão de. Pedatura Lusitana-Hispanica: em q se contem varias famílias nobres, e ilustres; Porto: 1667-1690 (pub. Alexandre António Pereira de Miranda Vasconcellos, António Augusto Ferreira da Cruz, Eugenio Eduardo Andrea da Cunha e Freitas.Porto : Livr. Fernando Machado, 1943-1948)
(6) A parte final desta introdução não foi transcrita na publicação original do artigo, por motivos de espaço.
(7) Almeida, Carlos Alberto Ferreira de. Romanização das Terras da Maia; Maia: Câmara Municipal da Maia, 1969.
(8) Collecção Official da Legislação Portuguesa, Anno de 1869, Imprensa Nacional, Lisboa 1870. Diário do Governo N.º 201, de 06 de Setembro – Lei de 28 de Agosto de 1869, ampliando as leis da desamortização aplicando estas aos passais, baldios e bens dos estabelecimentos de instrução pública.
(9) Auto de Partilha dos Montados de Transleça; Arquivo Privado de Arnaldo Mamede (cópia cedida ao Arquivo da AL HENNA); Valongo, 1874.