A Gafaria de Alfena, hospital de leprosos
Doença crónica e incurável ao longo de alguns séculos, a lepra era também conhecida pelo Mal de Lázaro, permanentemente presente, pelas deformidades físicas que chocavam o homem da Idade Média, que causavam medo e horror nas populações.
Introduzida pelas legiões romanas, de relativa pequena expressão e estabilizada na Europa Ocidental até ao Séc. XII, esta terrível doença sofreu um grande e muito rápido aumento da sua incidência durante os Séc. XII e XIII, crê-se que devido às Cruzadas, com a grande mobilização de Europeus para a região do Médio Oriente, com o objectivo de conquistar os lugares santos do cristianismo em poder dos “infiéis”, e o consequente contacto com os povos locais e respectivos focos de lepra, onde esta doença era endémica, o que veio provocar naturalmente a sua contaminação (1).
Regressados em massa à Europa Ocidental de onde haviam partido, em consequência da derrota que lhes foi imposta pelos Árabes, os Cruzados portadores da doença, ainda que, na maioria dos casos em fase de incubação – que normalmente vai de três a cinco anos – acabaram por causar a sua disseminação por contágio nas populações dos locais de origem onde se reinstalaram após o seu regresso da Terra Santa (2) (3).
Em alguns países da Europa Ocidental, nomeadamente em França, Inglaterra e na Escócia, a lepra atingiu as populações de uma forma verdadeiramente avassaladora.
Em Portugal, a doença ficou bastante longe de atingir as proporções verificadas nos referidos países, mas a verdade é que o número de leprosos chegou a ser relativamente significativo.
Pensa-se que esta doença atingiu o seu auge no reinado de D. Dinis, o Rei Lavrador, em finais do Séc. XIII, ou inícios do Séc. XIV, vindo depois a diminuir significativamente, de tal modo, que no Séc. XVI esta doença estava considerada como em vias de erradicação.
Para que tal viesse a acontecer foram absolutamente decisivas as medidas tomadas, algumas bastante drásticas, pelos poderes vigentes, os poderes reais e os poderes eclesiásticos.
AS GAFARIAS
As gafarias, leprosários ou lazaretos foram as instituições criadas pelas autoridades medievais para conter a proliferação da doença da lepra e, na medida do possível, promover a sua erradicação.
Consistiam, essencialmente, na total exclusão dos leprosos do convívio social com as populações sadias, na sua segregação e confinamento obrigatório, em locais isolados, por forma a evitar o contágio a todo o custo.
Sempre que saíam do perímetro da gafaria, os leprosos ou gafos eram obrigados a tocar um pequeno sino ou uma espécie de pequena matraca para avisar as populações da sua aproximação.
Só em França, em pleno Séc. XIII havia duas mil gafarias e cerca de vinte mil em toda a Europa. Na Inglaterra e na Escócia havia cidades com vinte gafarias, tantas como em todo o Reino de Portugal.
Na cidade do Porto e seus arredores variada documentação atesta a existência de três gafarias, uma no interior da cidade, na Reboleira, junto ao Douro, mais tarde transferida para Cimo de Vila de Mijavelhas, na zona do actual Jardim de S. Lázaro, outra em Gaia e uma terceira em Alfena (4).
A GAFARIA DE ALFENA
São profusas as referências ao Hospital de Leprosos ou Gafaria de Alfena.
O documento mais antigo que se conhece, é de 1214, do Arquivo Distrital de Braga, no qual uma tal D. Estefanina (5) se refere aos leprosos de Portugal e de Alfena.
Mas conhecem-se vários outros documentos, nomeadamente disposições testamentárias de importantes membros do Clero, concedendo doações à Gafaria de Alfena: do Bispo do Porto D. Julião Fernandes, em 1260; do Chantre do Porto e Coimbra, em 1262; do Cónego da Sé do Porto e Abade de Cedofeita Abril Pires, em 1295; do Bispo do Porto D. Vicente Mendes, em 1296; do Bispo do Porto D. Sancho Pires, em 1300; do Chantre da Sé do Porto, em 1312 (6).
Informação do Pe. António de Carvalho, em 1706, diz que «aqui há um Hospital de Lázaros, em que se sustentam quatro, e a cada um se dá cada semana três quartas de pão, e a cada uma das quatro festas do ano se lhes dá um alqueire de trigo e um almude de vinho, a cada de mais, e mais da ordinária, e um carro de lenha, e campo para hortas» (7).
«É administrador deste Hospital João Pinto Coelho, Senhor de Felgueiras, Vieira e Fermedo, e lhe toma conta o Corregedor da Comarca, como Provedor dela» (7).
Alguns anos mais tarde, em 1747, o Pe. Luís Cardoso, no seu “Dicionário Geográfico” aponta: « Alfena, Freguesia na Província de Entre Douro e Minho, Bispado, Comarca secular e Termo da Cidade do Porto, Comarca Eclesiástica da Maia (…) antes de entrar nesta ponte, vindo da Cidade do Porto, há outra ermida de S. Lázaro, e tem esta obrigação de prover um Hospital de Lázaros, cujas casas estão junto da dita Ermida, mas já arruinadas. Tem muita renda a Ermida e Hospital que parte dela se cobra nesta Freguesia e muitas de fora por várias terras» (8).
Poucos anos depois, nas “Memórias Paroquiais” de 1758, o Reitor de Alfena, Pe. Jerónimo da Cunha Sotomayor afirma: «… tem um Hospital e este se acha alagado por incúria do Administrador que é o possuidor da casa de Simães, ao qual lhe pagam e tem uma grande renda nesta Freguesia; e por várias vezes se lhes tem admoestado por capítulos de visita que o ponha corrente e juntamente a capela cuja invocação é de S. Lázaro, que também necessita de várias cousas; e esta casa (Simães) está obrigada a todo o necessário tanto para o Hospital como para a capela» (9).
Como se infere pela leitura dos testemunhos atrás referidos, não subsistem quaisquer dúvidas que as casas da Gafaria (Hospital) se situavam na margem esquerda do Rio Leça, alguns (poucos) metros para jusante da ponte românica de S. Lázaro (Ponte de Alfena) e que há mais de duzentos e cinquenta anos, em 1747, estavam “arruinadas” e, em 1758, o Hospital se achava «alagado». Aqui «alagado» tem o significado de desabado, como é óbvio.
AS RENDAS DA GAFARIA
Os rendimentos da Gafaria, pelo que atrás fica descrito, eram bastante vultuosos, e iam além das doações, algumas das quais atrás referidas. Provinham, essencialmente, das rendas pagas pelos casais enfiteutas das terras de que era proprietária a Gafaria, que em Alfena se situavam, no lugar do mesmo nome, atual lugar da Rua, no lugar de Transleça, e algumas terras no lugar da Ferraria, terras essas cuja administração competia, desde tempos remotos, aos Senhores de Felgueiras, Fermedo e Vieira, residentes no seu Solar de Sergude, até 1706, e no Paço de Simães, após esta data, ambos no concelho de Felgueiras (10).
A honra de Alfena e o seu Hospital de Leprosos gozavam da isenção do poder real, disposição esta confirmada numa Inquirição de D. Dinis, em 1307:
«Freguesia de S. Vicente de Queimadela ou Paço de Alfena, com toda a Vila, dizem as testemunhas que o trazem os gafos por honra, por razão que foi D. João Pires da Maia e deu-lha por sua alma. E porque era honrada no tempo de D. João Pires, trazem-na eles assim» (11).
Nas Inquirições de 1258, refere-se que o lugar de Alfena, actual lugar da Rua, Transleça, bem como alguns casais da Ferraria, são dos leprosos, que não pagam foro ao Rei e que aí não entra o Mordomo (cobrador de impostos), referindo, ainda, o legado aos leprosos pelo testamento de D. João Pires da Maia (provavelmente em 1226) (12).
Na Inquirição ao lugar da Ferraria, os moradores referem que vários casais preferiram construir as suas casas nas herdades dos leprosos porque aí beneficiavam de melhores condições do que nas terras do Senhor Rei (12).
Tais factos terão provocado um razoável aumento do número de fogos e de habitantes no lugar de Alfena, acentuando a sua importância face aos demais lugares, de modo tal, que Alfena passou a ser o nome da Freguesia, em detrimento da sua antiga designação (Queimadela).
A Rua passou a ser a designação do antigo lugar de Alfena, devido ao facto de ser arruado, isto é, possuir casas de ambos os lados da rua, rua essa que mais não era que a Estrada Real do Porto para Guimarães.
Já nos apercebemos, pelo que acima se descreve, que os Senhores de Felgueiras, responsáveis pela administração da Gafaria, não cuidavam dela como deviam, o desleixo e o desmazelo foram cavando a sua ruína.
Atente-se na Carta Régia emitida no Palácio Real de Mafra, em 3 de Novembro de 1824, dirigida a Ayres Pinto de Sousa, Governador das Justiças da Relação e Casa do Porto (13):
«Amigo, Eu El-Rei vos envio muito saudar. Sendo-Me presente o decadente estado da Casa de Francisco Peixoto Pinto Pereira Coelho da Silva, donatário dos Concelhos de Fermedo, Felgueiras e Vieira e da de sua mulher Dona Maria do Carmo Pinto de Sousa de Mello. E atendendo a representação e distinção das ditas Casas em outro tempo tão consideradas e das pessoas nelas interessadas que as fazem dignas da Minha Real Consideração e providência, para obstar a iminente ruína em que se acham pela má administração e desmazêlo dos respectivos donos, Hey por bem nomear o Desembargador desta Relação e Casa do Porto, Manuel António Vellez Caldeira de Castelo Branco para Juiz Administrador das casas dos sobreditos…».
Não só não providenciavam aos gafos o apoio que lhes era devido, como faltavam na manutenção e conservação das casas do Hospital, inclusivamente existem documentos dando conta da falta de cobrança das rendas aos casais enfiteutas, durante dezenas de anos.
CONCLUSÃO
Perante este quadro decadente que terá acontecido aos doentes da Gafaria de Alfena?
Em Portugal, desde sempre país de brandos costumes, as restrições impostas aos portadores desta doença nunca foram tão drásticas como em outros países da Europa.
Não era obrigatório o seu confinamento em gafarias, podiam viver em locais, desde que isolados, para evitar o contágio, à sua escolha ou de suas famílias, que cuidavam do seu sustento e tratamento.
Em Alfena, pressionados pelo aumento da população, foram-se afastando, ou sendo afastados para zonas despovoadas, periféricas, onde, aos poucos, construíram as modestas casas em que se abrigavam.
Eram, ainda há bem pouco tempo, os lugares “mal-amados”…
Em 04-07-1947, a Junta de Freguesia de Alfena enviou um ofício ao Presidente da Câmara de Valongo e também ao sub-delegado de Saúde, insistindo que sejam, rapidamente, tomadas as providências necessárias para isolar casos de lepra que existem nesta Freguesia… (14)
De resto, os Alfenenses mais velhos lembrar-se-ão, com certeza, na década de cinquenta e início da de sessenta do século passado, de visitas regulares de equipas do Hospital Rovisco Pais, da Tocha, a moradores de Alfena, alguns dos quais seguiam para tratamento no referido Hospital.
Por: Arnaldo Mamede (*)
(*) Membro da AL HENNA – Associação para a Defesa do Património de Alfena.
(1) Meireles, Leão de. Um Foco de Lepra. Porto : IMPRENSA MODERNA, 1886.
(2) Doria, José Luís. Apontamentos históricos sobre a lepra. Anais do Instituto de Medicina e Higiene Tropical, Vol. 14, pg. 109-115. 2014.
(3) Recentemente, estudos genómicos comparativos ofereceram conclusões que divergem desta visão clássica da história da lepra no continente europeu. Sabe-se agora que Mycobacterium leprae, o agente etiológico, é dos mais antigos patogénicos que nos acompanhou nas nossas migrações ao longo de centenas de milhares de anos. O seu estabelecimento na Europa terá acontecido há cerca de 40 mil anos atrás.
Marc Monot et al. On the Origin of Leprosy. Science. Vols. Vol 308, pg. 1040-1042, 13/05/2005 .
(4) Silva, Germano. Desde quando começaram a funcionar as gafarias? Jornal de Notícias, 13/05/2007.
(5) Testamento de D. Estevaínha Soares da Silva; Cabido, Gaveta dos Testamentos, nº10. s.l. : Arquivo Distrital de Braga, 1214.
(6) de Grave, João e Almeida, Manuel Lopes de. Censual do Cabido da Sé do Porto: códice membranáceo existente na Bibioteca do Porto. Porto : Porto Imprensa Portuguesa, 1924.
(7) Costa, P.e António Carvalho da. COROGRAFIA PORTUGUEZA, E DESCRIPÇAM DO FAMOSO REYNO DE PORTUGAL…; Tomo I, pg.371. Lisboa : Oficina de Valentim da Costa Deslandes, 1706.
(8) Cardoso, Padre Luís. Diccionario geografico, ou noticia historica de todas as cidades, villas, lugares, e aldeas, rios, ribeiras, e serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com todas as cousas raras, que nelles se encontraõ, assim antigas, como modernas. Lisboa : Regia Officina Sylviana e da Real Academia, 1747.
(9) Sotomaior, Reitor Jerónimo da Cunha. Memórias paroquiais, vol. 2, nº 54, p. 473 a 478. Alfena : Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1758.
(10) Freitas, Eduardo de. Felgerias Rubeas – Subsídios para a História do Concelho de Felgueiras, 2.ª Ed.. Felgueiras : Câmara Municipal de Felgueiras, 1985.
(11) Corpus Codicum Latinorum et Portugalensium, Vol. I p.152. Porto : s.n., 1891.
(12) Portugaliae Monumenta Historica – Inquisitiones, Vol. I Fasc.4-5 fl.506-508, 512, 525, 565 e 566. Lisboa : Acad. Ciências, 1897.
(13) Processo de penhora contra José da Silva Neves, de Alfena, rendeiro da Casa de Felgueiras, fls 2-2v. s.l. : Aquivo privado de Arnaldo Mamede, 1829.
(14) Moreira, Domingos A. ALFENA, a terra e o seu povo; p. 122. Cucujães : s.n., 1973.